terça-feira, outubro 17, 2006

Pequenas Crónicas - Parte II

  • Algumas ideias acerca do que significa ensinar Música (CONTINUAÇÃO)
Obviamente que se pode tratar de uma questão de diferenciação de perfis de aptidão musical (Rodrigues & Ferreira, 1994). Mas julga-se que, em grande parte, se trata também do percurso de aprendizagem musical, do tipo e qualidade de instrução musical - informal e formal - a que se foi exposto.
Algum ensino tem privilegiado o conhecimento acerca da Música, sobre os seus elementos constituintes, numa tentativa de criar hábitos de "apreciação musical". É importante que a análise da Música enquanto objecto externo se faça, mas depois da expressão e compreensão musical fazerem parte da própria natureza do sujeito. Síntese - tal e qual como na alimentação das plantas - poderia, talvez, ser a palavra.
Poderá alguém "apreciar" um poema lido num idioma que não se domina? Para "apreciar" é preciso compreender.
E - acalmem-se os cépticos! - porque dentro das possibilidades de compreensão do possível há ainda espaço de sobra para a incompreensão e para o inefável. Ou não fosse este (também) o território da interpretação e da criação.
Gordon tem defendido que a Música não é uma linguagem mas que a sua aprendizagem se deve processar como a da linguagem, de forma a que a sua expressão se processe como uma linguagem, no sentido de algo que faz parte do discurso de ideias musicais próprias do sujeito. Assimilação poderia, talvez, ser a palavra. Ou seja, a ênfase não está no conhecer sobre Música mas no "ser Música". Podemos expressar as nossas ideias através das nossas próprias palavras. A educação musical deveria possibilitar que expressássemos as nossas ideias musicais através do nosso próprio vocabulário musical.
O acto educativo deveria alargar a compreensão do Mundo, e consequentemente, também, a compreensão musical, em todas as dimensões. É dramático pensar que muita da instrução musical oferecida é castradora, cerceadora de possibilidades de desenvolvimento e expressão musical.
0 princípio de aprendizagem musical de que deve primeiro proporcionar-se a exposição ao som e só depois passar à sua expressão gráfica não é novo. 0 princípio educativo de que a experiência deve preceder a teorização não é novo, também. Desde o século XVII que pensadores como Comenius, Pestalozzi, Rousseau, Dalcroze, os referem. Provavelmente, também os contemporâneos de Sócrates terão dito coisas semelhantes.
Aqueles princípios são, pois, velhos.
Continuando... Veêm-se crianças de quatro anos cuja iniciação musical se baseia fundamentalmente na aprendizagem da pauta musical e seus derivados: "Música a sério! Não são brincadeiras."
Vêem-se crianças obrigadas a ter aulas de educação musical no ensino genérico que passam o tempo todo a fazer cópias de música. Ensinar Música continua a ser para alguns professores especialistas em "controle de disciplina da classe" (e, mais recentemente, em ensino de "atitudes e valores") ensinar o código musical, como se essa fosse a senha de penetração no mundo da Música. Não é certamente, mas é com certeza a forma mais fácil de tornar hermético um determinado modo de conhecimento, de distinguir entre os que são e os que não são supostamente "Músicos", de mostrar que se é um "iniciado". (Subentenda-se: todos os saberes têm os seus corporativismos e as suas estratégias de regulação de poder).
Vêem-se manuais que tratam o ritmo, e a sua expressão em termos de notação musical, como problemas de aritmética. Semínima, mais semínima é igual a mínima. Colcheia vezes colcheia é igual a semínima. Perdão, queria dizer colcheia ao quadrado.
Vê-se alguém esforçar-se seriamente para que na aula de Formação Musical os alunos possam movimentar-se, dançar. Mas logo vem o lápis-metrónomo ameaçador, a bater na carteira o tempo latejante, o compasso obsessivo, e os meninos a rezar, e alguém que diz: "Eles aqui têm que aprender. Isto aqui é mesmo para aprender Música." E os meninos a rezar.
(continua)

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